A morte do Pequeno Príncipe

Em 2015, muitos leitores se surpreenderam com a quantidade de exemplares de O Pequeno Príncipe nas livrarias. De certa forma isso não era novidade, pois a obra, lançada em 1943 e traduzida para mais de 250 idiomas e dialetos, é um dos livros mais vendidos da história, cerca de 150 milhões de cópias.

O que chamou a atenção, no caso, era a variedade de capas e edições, cada qual organizada por uma editora diferente.

O fenômeno tem uma explicação. Em 2014, a morte do autor da obra, Antoine de Saint-Exupéry, completou 70 anos, o que fez que, a partir de 1º de janeiro do ano passado, ela caísse em domínio público. Livres da obrigação de pagar direitos autorais, as editoras avançaram no filão, mudando apenas a forma e o grau de sofisticação de suas edições.

Essa situação é um aspecto do mercado editorial. O que pouca gente sabe é que o autor de O Pequeno Príncipe tem uma história tão fascinante quanto as que ele conta em seus livros.

O escritor francês Antoine de Saint-Exupéry
O escritor francês Antoine de Saint-Exupéry

Antoine Jean-Baptiste Marie Roger Foscolombe de Saint-Exupéry nasceu em Lyon, em 1900. Apaixonado por aviação, trabalhou como piloto comercial e realizou algumas travessias notáveis, especialmente levando-se em conta a precária tecnologia da época. O fascínio pelos ares refletiu-se em obras como o Correio do Sul, uma aventura inspirada na rota entre Casablanca e Dakar, feita pelo autor, e Voo Noturno, ambas publicadas antes de O Pequeno Príncipe.

Já maduro, Saint-Exupéry viveu um turbulento caso de amor com Consuelo Suncin Sandoval, que ele conheceu em Buenos Aires. Ela nascera em El Salvador e havia adquirido a nacionalidade argentina aos 25 anos. Com 27, já tinha enviuvado duas vezes. Saint-Exupéry a pediu em casamento no dia em que se encontraram pela primeira vez, e escreveu a ela uma carta de 40 páginas. A relação seria marcada por separações, reencontros e incontáveis traições mútuas.

Em 1939, logo após o início da Segunda Guerra Mundial, ele se apresentou como voluntário na aviação militar francesa, mas acabou se exilando nos Estados Unidos depois que os nazistas invadiram o seu país, em junho de 1940. Foi durante o período de exílio em Nova York que ele escreveu, além de O Pequeno Príncipe, Piloto de Guerra, mais um livro inspirado em suas experiências como aviador. O autor vivia numa grande casa de madeira na companhia de Consuelo, que, nas palavras do próprio Saint-Exupéry, teria se agarrado a ele “como um caranguejinho teimoso”.

Em junho de 1944, acontecimentos importantes o conduziram de volta à Europa. As forças aliadas desembarcaram na Normandia, no Dia D, e deram início à libertação da França. Ao mesmo tempo, no Leste, os soviéticos avançavam sem que os nazistas pudessem resistir. Mesmo assim, era preciso fazer os alemães dividirem as forças no território francês. A estratégia foi promover um novo desembarque, desta vez na região de Provença, costa sul da França.

Devido à sua experiência, Saint-Exupéry foi destacado para sobrevoar a região, realizando missões de reconhecimento com a finalidade de mapear as defesas alemãs. Na manhã de 31 de julho de 1944, ele decolou do aeródromo de Bastia, na Córsega, em um avião de combate Lockheed Lightning P-38, para mais uma missão. No quartel-general norte-americano, os radares acompanharam sua trajetória até que, por volta das 13 horas, ele desapareceu. Ninguém sabia explicar o que havia acontecido.

A partir de então realizaram-se incontáveis missões, todas sem sucesso, para localizar os destroços do avião. A falta de dados gerou especulações, como a de que Saint-Exupéry teria desviado da rota e simulado a própria morte para viver em um lugar desconhecido, longe dos horrores da guerra, que ele considerava “uma enfermidade como o tifo”, e não uma aventura. A hipótese de suicídio também não estava descartada. O pessimismo destilado em seus livros aguçava a imaginação do público, o que só cresceu com o passar dos anos. Em 1943, ele escrevera a Consuelo: “Penso que você seria mais feliz sem mim, e que eu encontraria a paz, enfim, na morte”.

Paralelamente, os herdeiros do escritor não colaboravam nem um pouco para elucidar o mistério. Muita gente achava que essa atitude tinha o objetivo de alimentar o mito em torno da figura e, assim, garantir a continuidade dos fartos pagamentos à sua família.

Muito tempo se passou. Apesar dos incontáveis esforços para encontrar a solução desse caso, ela nunca vinha. Até que, em setembro de 1998, pescadores da região de Marselha localizaram uma pulseira de ouro envolta em um pedaço de tecido do tipo usado nos uniformes militares da época da Segunda Guerra Mundial, com o nome de Antoine de Saint-Exupéry e Consuelo. A joia continha também o nome e o endereço dos editores americanos do escritor aviador.

A descoberta animou os exploradores, mesmo que a região já tivesse sido rastreada em mais de cem quilômetros quadrados sem nenhum indício dos destroços da aeronave. Somente em maio do ano 2000 apareceu o que prometia ser a prova definitiva. O mergulhador profissional Luc Vanrell descobriu, no leste da ilha de Riou, diante da Costa de Marselha, um lugar próximo de onde pescadores encontraram a pulseira, uma peça do avião de Saint-Exupéry.

Os herdeiros do escritor tentaram de todas as maneiras impedir as investigações, até que, em outubro de 2003, a Justiça francesa autorizou o resgate dos destroços do avião, com o compromisso de que os responsáveis não estendessem a busca aos restos mortais do piloto.

Sem novas descobertas a partir de então, a análise recaiu sobre a peça encontrada em maio de 2000 por Luc Vanrell, e em abril de 2004, concluído o exame, não havia mais dúvidas de que se tratava de uma parte do avião de Saint-Exupéry. Nela constava a inscrição 2734 L, o número de matrícula da aeronave de acordo com os arquivos da força aérea dos Estados Unidos. De fato, o veículo havia caído na região de Riou, o que foi certificado pelas autoridades francesas.

Ainda assim, ninguém foi capaz de esclarecer as razões da queda do avião, o que o autor de O Pequeno Príncipe parecia ter levado consigo para sempre.

A cidade portuária de Marselha, na costa sul da França
A cidade portuária de Marselha, na costa sul da França

Em março de 2008, o mistério acabou. O alemão Horst Rippert, então com 88 anos, assumiu a autoria dos disparos que derrubaram o avião. Naquele fatídico 31 de julho de 1944 ele estava a serviço com seu esquadrão de caças em Marignane, perto de Marselha, na costa sul da França, quando o radar alertou a aproximação de um grupo de aviões de reconhecimento aliados sobrevoando o Mediterrâneo. Rippert, então um jovem de 24 anos, localizou o Lightning P-38 com as cores francesas e o abateu.

Alguns dias depois, Rippert teve notícias do desaparecimento de Saint-Exupéry. Apesar de estar certo de que havia derrubado o avião, ele anotou o fato apenas em seu diário pessoal e não o revelou a ninguém. Ao longo dos anos seguintes, remoeu a dor de ter matado o ídolo de sua juventude, autor dos livros que lia com tanto gosto.

“Eu só soube depois que era Saint-Exupéry. Eu queria que não tivesse sido ele, porque todos os jovens da minha geração leram seus livros. Nós o adorávamos”, declarou Rippert ao jornal La Provence.

Após a guerra, Rippert trabalhou como repórter esportivo para a televisão alemã. Em 2003, quando soube que os restos do avião haviam sido localizados, ele confirmou suas suspeitas, mas continuou a guardar segredo. Apenas cinco anos depois, finalmente, resolveu revelar o que não aguentava mais esconder.

No entanto, era possível que essas declarações não passassem de mais uma história inventada por um veterano de guerra em busca de notoriedade ou redenção.

Com efeito, faltavam evidências documentais para o relato de Rippert, pois os registros de voos das forças alemãs foram destruídos no final da guerra. Ainda assim, as pessoas que conversaram com ele tiveram a impressão de ouvir uma história verdadeira e, em termos gerais, bem fundamentada. O depoimento dado pelo alemão foi aceito também pelo sobrinho-neto de Saint-Exupéry, que atuava como porta-voz da família do escritor.

Enquanto não surgir nenhum fato que desminta a versão de Rippert, ela será o final da história de Saint-Exupéry. Haverá algum outro enredo oculto?

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