O triste fim de Jean Charles, um brasileiro na terra da Rainha

Os agentes da Scotland Yard estavam com os nervos à flor da pele na manhã daquela sexta-feira, 22 de julho de 2005. Quinze dias antes, Londres havia sofrido um terrível atentado, com explosões que atingiram o sistema de transporte público e mataram 56 pessoas. Além disso, na véspera, dia 21 de julho, grupos terroristas tentaram realizar um novo ataque, que felizmente falhou.

O etíope Hussain Osman era um dos procurados pelo ato malogrado do dia anterior: a polícia havia encontrado uma mochila que continha uma bomba caseira e também um documento seu – a carteira da academia onde ele praticava musculação.

Alguém poderia se perguntar por que uma pessoa com a mente voltada para o mal e executando um plano tão macabro cometeria um deslize desses, mas a explicação era mais singela: ele queria ser reconhecido e lembrado por seu feito “heroico”.

Hussain Osman morava num bloco de apartamentos em Tulse Hill, no sul da cidade, onde desde cedo naquela sexta-feira um grupo de agentes da Scotland Yard havia se postado. A ideia era abordá-lo logo que ele saísse, mediante a identificação feita a partir de uma foto copiada de seu passaporte. A imagem era ruim, mas naquele momento era tudo com o que os policiais podiam contar.

Em outro apartamento do mesmo prédio, o brasileiro Jean Charles despertava para mais um dia de trabalho. Ele havia sido chamado para consertar um alarme de incêndio em outra parte da cidade e se aprontou para sair. Apesar da pele clara, sua aparência intrigou o policial que vigiava a saída do prédio, que o confundiu com o terrorista procurado. Imediatamente, os agentes começaram a segui-lo.

Montagem com o brasileiro Jean Charles (dir.) e o terrorista Hussain Osman
Montagem com o brasileiro Jean Charles (dir.) e o terrorista Hussain Osman

Jean Charles de Menezes nascera na cidade mineira de Gonzaga, dia 7 de janeiro de 1978, e fora criado numa fazenda. Ainda jovem, demonstrou talento para a eletrônica, o que incentivou a família a mandá-lo a São Paulo para estudar. Na ocasião, ele ficou morando na casa de seu tio. Com 19 anos já estava diplomado como técnico e cinco anos depois, em 2002, foi tentar a vida na Inglaterra.

Versátil e esforçado, em pouco tempo aprendeu inglês, começou a trabalhar como eletricista e a mandar dinheiro para a família, enquanto driblava a imigração usando um visto de estudante. Até aquele fatídico 22 de julho, ele não havia tido nenhum incidente com a polícia.

O grupo de vigilantes que seguiu Jean Charles não pôde contar com o apoio da equipe armada, que estava atrasada. Na verdade, não havia equipes suficientes para cobrir todos os endereços vigiados, tal o estado de caos e nervosismo que a situação vinha causando ao serviço de segurança pública de Londres. A ordem era que as equipes se deslocassem mediante ordem da central.

Essa situação de estresse levou os policiais, que já haviam confundido Jean Charles com o terrorista etíope, a cometerem o segundo erro: eles não o pararam antes que ele tomasse um ônibus para a estação Brixton do metrô. De fato, se achavam que ele era o terrorista, a abordagem deveria ter sido feita antes do embarque, pois as possibilidades de um ato suicida ocorrer dentro do ônibus lotado eram grandes.

Jean Charles desceu do ônibus diante da estação Brixton, mas logo viu que o local estava fechado por causa das ameaças de atentados. Ele, então, se apressou e conseguiu entrar no mesmo ônibus que havia tomado antes, agora com a intenção de ir à estação Stockwell. O gesto de sair do ônibus para entrar nele novamente foi interpretado pelos policiais como uma tática de despiste, o que aumentou significativamente as suspeitas de que se tratava mesmo do terrorista.

Momento em que Jean Charles ("JC") descia a escada rolante da estação Stockwell
Momento em que Jean Charles (“JC”) descia a escada rolante da estação Stockwell

Na estação Stockwell os policiais cometeram o terceiro erro, pois novamente nenhum deles deteve Jean Charles: o brasileiro entrou tranquilamente, pegou um jornal de distribuição gratuita e desceu as escadas rolantes folheando o exemplar. Na plataforma, entrou no vagão e se sentou, aguardando a partida. Em mais uma peça pregada pelo destino, o trem demorou mais do que o usual para partir, dando tempo suficiente para que os policiais que o perseguiam entrassem no vagão e o abordassem.

Assustado, ele se levantou, num gesto repentino. Temendo que por baixo de sua roupa houvesse bombas, e antes que ele esboçasse qualquer reação, os agentes deram-lhe sete tiros, sendo que cinco atingiram a cabeça.

De todos os erros cometidos pelos policiais, sem dúvida o mais grave foi não ter dado nenhum alerta antes de atirar.

Logo depois do fato, a Scotland Yard começou a divulgar a informação de que uma pessoa ligada aos ataques terroristas tinha sido morta. Tudo estava cercado de mistério, mas ninguém dava maiores esclarecimentos. Trinta e seis horas depois do assassinato, a verdade veio à tona: o homem atingido não era um terrorista, mas o brasileiro Jean Charles de Menezes. O mundo todo se chocou com a imagem do corpo estirado no chão do vagão sobre uma poça de sangue.

A partir de então, a guerra de informações começou. Disseram que ele havia pulado a catraca da estação; que ele correu; que usava roupa de frio em pleno verão – os filmes liberados pela administração do metrô fizeram esses argumentos caírem por terra.

O governo do Brasil enviou o ministro Celso Amorim ao Reino Unido para acompanhar o caso. Autoridades que o receberam garantiram que as investigações seriam amplas, com a intenção de elucidar totalmente o ocorrido. Na ocasião, a diplomacia brasileira foi criticada por não ter sido mais incisiva, decerto pela compreensão com o momento crítico pelo qual passava o Reino Unido, o que criava certo constrangimento.

Em 29 de julho o corpo de Jean Charles foi sepultado em Gonzaga, sua cidade natal, com grande comoção e um sentimento de revolta por parte da família e dos amigos. Ironicamente, no mesmo dia, Hussain Osman, o verdadeiro terrorista, foi encontrado em Roma. Ele havia aproveitado a confusão causada pela morte do brasileiro para fugir e se instalar na capital italiana, onde morava o seu irmão. Preso, foi extraditado para o Reino Unido.

Em Londres, a polícia iniciou uma investigação para apurar as circunstâncias do caso. Havia uma pressão muito forte para que não se divulgasse a identidade dos agentes envolvidos. A Scotland Yard não admitia que um incidente isolado, por mais grave que fosse, enfraquecesse a corporação num momento em que os esforços para deter o terrorismo se mostravam mais necessários do que nunca.

Em julho de 2006, um ano depois do assassinato, os promotores responsáveis pelo caso decidiram que nenhum agente policial seria processado, mas que a Scotland Yard deveria ser julgada por violar as leis de saúde e segurança.

A decisão foi bastante contestada, especialmente porque os promotores aplicaram o chamado “teste dos 51 por cento”, que apura se as evidências encontradas em determinado fato são suficientes para a acusação de um crime, ou seja, se as possibilidades de condenação são maiores do que as de absolvição. No caso, as evidências eram expressivas.

Friends and relatives of Jean Charles de Menezes including Erionaldo da Silva (left) and cousins Alex Pereira (second left), Vivian Figueiredo (third left), Alessandro Pereira (Centre) and Patricia da Silva Armani (centre right) launch a campaign to have a permanent memorial erected outside Stockwell Tube station in south London where he was shot dead by police four years ago to the day.
Memorial em homenagem a Jean Charles em frente à estação Stockwell

O juiz do processo acabou decidindo que, devido à falta de provas, nenhum policial poderia ser individualmente responsabilizado pelo assassinato do brasileiro.

Um ano depois, em julho de 2007, Hussain Osman foi julgado e condenado a um mínimo de quarenta anos de prisão pelo atentado frustrado de 21 de julho de 2005. Em sua defesa, ele alegou ter sido coagido a participar da operação por seus companheiros. O argumento, é claro, não colou. Em novembro daquele ano, seguindo a linha de ação dos promotores responsáveis pelo caso de Jean Charles, a polícia de Londres foi considerada culpada por violar as leis de saúde e segurança e teve de pagar uma multa.

O assassinato de Jean Charles foi a julgamento em setembro de 2008. O juiz afastou a possibilidade de um veredito, o que acabou sendo confirmado pelo júri em dezembro. Quase um ano depois, em novembro de 2009, a polícia de Londres firmou um acordo de indenização com a família do brasileiro. O valor não foi revelado.

O comissário de polícia Sir Ian Blair, que na época do assassinato de Jean Charles chefiava a Scotland Yard, foi nomeado para a Câmara dos Lordes. Um belo prêmio de consolação para a sua renúncia forçada, ocorrida em 2008.

Inconformada com o resultado do julgamento, a família de Jean Charles acabou recorrendo à Corte Europeia de Direitos Humanos, sediada em Estrasburgo, França, contestando a decisão de não processar os policiais que agiram no caso. Em 30 de março deste ano a Corte proferiu a sua decisão, tomada por treze votos a quatro, negando as pretensões da família do brasileiro. O tribunal endossou a conclusão das autoridades britânicas que investigaram o caso, segundo a qual não havia provas suficientes para processar nenhum policial individualmente.

A notícia, publicada em meio aos rumorosos protestos pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff e aos desdobramentos da operação Lava Jato, passou quase despercebida no Brasil.

Diante de um caso tão obscuro e cheio de erros como este, fica uma dúvida: se Jean Charles fosse um cidadão europeu ou norte-americano, a decisão da Corte Europeia teria sido a mesma?

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