Hong Kong: o editor sumiu

O enredo é digno de um filme de suspense. No fim da tarde do dia 30 de dezembro, Lee Bo, sócio da editora Mighty Current, de Hong Kong, recebeu um pedido de dez livros de um novo e desconhecido cliente e resolveu entregar os exemplares pessoalmente. Sua esposa, Sophie Choi, disse que o esperaria para jantar. Mas as horas passavam e ele não voltava para casa.

A tensão já era grande, pois quatro pessoas da Mighty Current e da livraria Causeway Bay Books, de propriedade da editora, estavam desaparecidas. Lee poderia muito bem ser o quinto da lista.

O primeiro desaparecimento ocorrera em 17 de outubro, revelando uma operação de âmbito internacional. O sócio de Lee Bo na editora, Gui Minhai, foi sequestrado por um chinês em sua casa em Pattaya, na Tailândia. Gui, que possui nacionalidade sueca, fez vários telefonemas à esposa ao longo das semanas seguintes sem nunca mencionar seu paradeiro. A família apresentou uma denúncia às autoridades da Suécia e à Interpol, porém, aparentemente, a polícia tailandesa não investigou o caso.

O editor Lee Bo
O editor Lee Bo

Depois de Gui, também em outubro sumiram Lui Por, gerente da editora, Cheung Chi-ping, seu assistente, e Lam Wing-kei, gerente da livraria. Os três teriam sido sequestrados quando entravam no território chinês continental.

Para surpresa de Sophie Choi, às dez da noite o marido lhe telefonou de Shenzhen, cidade adjacente a Hong Kong, no interior da China, e explicou que não voltaria por algum tempo, pois estava cooperando com uma investigação. Procurou acalmar a esposa dizendo que estava bem, mas lhe pediu para ser discreta.

O que mais a intrigou foi que Lee Bo falava em mandarim – e não em cantonês, como o casal estava acostumado a conversar – e, aparentemente, tinha alguém sussurrando atrás dele.

Depois disso, testemunhas disseram que ele havia tomado um elevador no prédio da editora por volta das seis da tarde e descido na companhia de pelo menos oito pessoas. No térreo, foi empurrado para dentro de uma van por um grupo de homens, que partiu imediatamente.

Os desaparecimentos tinham claro motivo. A Mighty Current, assim como outras editoras de Hong Kong, publicava livros sobre política chinesa, aproveitando a liberdade de expressão que podia desfrutar no território da antiga colônia britânica. No entanto, as obras incomodavam as autoridades vizinhas ao abordarem as lutas internas pelo poder no Partido Comunista Chinês, além das baixezas dos seus líderes. Muitos livros eram adquiridos por turistas vindos da China continental, que, dessa forma, acabavam tendo acesso a um material impossível de encontrar no seu país. O sequestro das cinco pessoas ligadas à editora e à livraria Causeway Bay Books seria, portanto, um ato de intimidação.

Entre os cinco desaparecimentos, o de Lee Bo era o mais chocante, pois havia ocorrido dentro de Hong Kong, onde as autoridades policiais chinesas não têm permissão para agir. Procurado, o departamento de imigração do território declarou que não havia registro de saída de Lee – que, a propósito, tem nacionalidade britânica e deixara em casa seu documento com permissão de retorno.

Os Estados Unidos e a União Europeia manifestaram sua preocupação com o caso, especialmente com a autonomia do território e a integridade do modelo “Um país, dois sistemas”, válido para Hong Kong e Macau. Representantes de vários países e da Anistia Internacional protestaram.

No dia 17 de janeiro, Gui Minhai, o outro sócio, apareceu na televisão estatal chinesa CCTV e confessou que havia voltado “espontaneamente” à China para assumir sua responsabilidade pelo atropelamento e morte de uma jovem, fato ocorrido em 2004, quando ele dirigia embriagado.

A livraria Causeway Bay Books fechada
A livraria Causeway Bay Books fechada

Lee Bo, o sócio de nacionalidade britânica, manifestou-se por carta logo depois, e também declarou ter ingressado na China “voluntariamente” para participar de uma investigação como testemunha. Sua mulher pôde encontrá-lo num hotel na parte continental do país e atestou depois que ele estava “disposto e bem de saúde”. De volta a Hong Kong, retirou a queixa do desaparecimento do marido e entregou aos meios de comunicação a carta escrita por ele, na qual Lee reafirmava ter se entregado às autoridades chinesas “por vontade própria” e esperava que a polícia de Hong Kong não continuasse a “desperdiçar recursos” com o seu caso.

Na esperança de convencer as autoridades chinesas a libertar o seu marido, Sophie Choi destruiu cerca de 50 mil exemplares de títulos banidos da China e críticos do Partido Comunista Chinês do estoque da Causeway Bay Books. A iniciativa, contudo, não surtiu efeito.

No dia 28 de fevereiro, os três funcionários, Lui Por, Cheung Chi-ping e Lam Wing-kei, junto com Gui Minhai, falaram à TV Phoenix, emissora pró-Pequim, admitindo a venda não autorizada de 4 mil livros na China. A declaração de Liu Por impressionava pela franqueza: “Eu refleti profundamente sobre meus atos e me arrependo muito da venda ilegal de livros que fiz junto com Gui Minhai”.

Estava na cara que as confissões haviam sido obtidas mediante coação. Lam Wing-kei também foi de uma sinceridade brutal ao declarar que os livros “geraram muitos rumores na sociedade e foram uma má influência”, para então concluir: “Eu admito meus erros e estou disposto a ser penalizado”.

Alguns dias depois as autoridades chinesas libertaram Liu Por e Cheung Chi-ping, que regressaram a Hong Kong apenas para pedir à polícia local que arquivasse os seus casos de desaparecimento, afirmando não precisar de nenhuma ajuda do governo ou da polícia de Hong Kong. Em seguida, retornaram discretamente a Shenzhen, onde estavam suas famílias e onde provavelmente teriam de permanecer sob vigilância.

O futuro da Causeway Bay Books e da Mighty Current é incerto, mas, enquanto os sócios Lee Bo e Gui Minhai estiverem presos na China, nenhuma obra crítica ao regime chinês ou a seus dirigentes será publicada ou vendida pelas casas. Não é de se descartar o fechamento da livraria e da editora.

Todo esse episódio foi uma grande decepção para quem ainda acreditava na liberdade de expressão no território, e mostrou que brincar com os chineses pode ser perigoso. Perto deles, então, nem se fala.

Hong Kong foi ocupada pelo Reino Unido após a Guerra do Ópio (1839-1842) e tornou-se possessão britânica em 1898, quando a China entregou a área aos invasores europeus por um prazo de 99 anos.

Imagem noturna de Hong Kong
Imagem noturna de Hong Kong

Em setembro de 1982, na iminência de devolução de mais uma joia do império britânico, a primeira-ministra Margareth Thatcher visitou Pequim. Queria conversar com Deng Xiaoping sobre os direitos de soberania no território em questão.

Ela exibia confiança graças à vitória na Guerra das Malvinas, ocorrida três meses antes, mas encontrou um interlocutor duro, que rejeitou as suas pretensões e marcou a data da transferência do território aos chineses para 1º de julho de 1997. Ao longo do encontro, Deng fumou e cuspiu sem parar – um hábito conhecido dos chineses mais antigos.

A atmosfera hostil parece ter dobrado a Dama de Ferro. Ao descer as escadarias na saída do Grande Salão, Thatcher perdeu o equilíbrio e caiu, derrubando a bolsa no chão. Voltou para casa irritada e deprimida. Dois anos e 22 rodadas de negociações depois, em dezembro de 1984 ela concordou com a devolução imposta pelos chineses e assinou uma Declaração Conjunta com seu colega do país, o primeiro-ministro Zhao Ziyang.

O território foi entregue na data prevista e Hong Kong passou a desfrutar o status de Região Administrativa Especial, com relativa autonomia em relação à China, judiciário independente e liberdades individuais. Porém, assim como os livros da Mighty Current, tudo isso pode desaparecer num piscar de olhos.

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