Os donos do Diário de Anne Frank

Em artigo anterior, falamos sobre o escritor de O Pequeno Príncipe, Antoine de Saint-Exupéry, seu misterioso desaparecimento e o fato de, em 2015, a sua obra ter caído em domínio público, o que explica a enxurrada de lançamentos do famoso livro no mundo todo, inclusive no Brasil.

Em 2016, esse seria o provável destino de outra obra de prestígio, O Diário de Anne Frank. Escrito por uma adolescente judia durante o período em que ela e sua família se escondiam da perseguição nazista, o livro veio a público depois da Segunda Guerra Mundial e comoveu o mundo.

Passados 70 anos da morte da autora, ocorrida em 1945, a obra estaria livre para publicação, sem necessidade do pagamento de direitos autorais. Porém, se depender da Anne Frank Fonds, fundação suíça criada em 1963 pelo pai de Anne, isso não vai acontecer tão cedo. Segundo a entidade, Otto Frank, que viveu até 1980, seria coautor do livro. O assunto começou a gerar polêmica no ano passado e, pelo visto, ainda vai longe.

A adolescente judia Anne Frank
A adolescente judia Anne Frank

Na verdade, existem quatro versões do diário, não apenas uma. A primeira são as anotações originais de Anne a partir de julho de 1942, no calor dos acontecimentos. A segunda versão surgiu quase dois anos depois. Em março de 1944, Gerrit Bolkestein, o ministro da educação holandês, então exilado na Inglaterra, declarou no rádio que, quando a guerra estivesse encerrada, reuniria relatos escritos pelo povo de seu país durante a ocupação nazista. Anne sentiu a importância do que escrevia e criou uma nova versão, acrescentando dados, suprimindo trechos e deixando algumas passagens mais claras. Esse trabalho foi interrompido em agosto, quando ela e seus companheiros de esconderijo foram presos.

A terceira versão é a de seu pai. Por conta própria, ele combinou os textos das duas versões escritas pela filha, especialmente porque a segunda estava incompleta. Em junho de 1947, publicou 3 mil exemplares de sua edição.

A quarta versão data de 1991, como resultado do trabalho da pesquisadora holandesa Mirjam Pressler, que reintegrou à terceira versão do livro trechos das duas primeiras que haviam sido suprimidos por Otto. Essa é a obra que circula no Brasil atualmente. Ao contrário de Otto e Anne, Mirjam Pressler está viva.

Como costuma acontecer em discussões póstumas por direitos autorais, Otto e Mirjam, sem querer, acabaram roubando as atenções que deveriam permanecer em outra pessoa: a própria autora do livro.

Annelies Marie Frank nasceu em Frankfurt, Alemanha, dia 12 de junho de 1929, e passou a infância em sua cidade natal, onde seu pai possuía um negócio. Era uma garota desinibida, alegre e comunicativa. Tinha uma irmã, Margot, três anos e meio mais velha.

A família levava uma vida relativamente tranquila, que começou a ser abalada pela crise econômica enfrentada pela Alemanha no período entre guerras. O avanço do antissemitismo e a iminência do conflito bélico acabaram definitivamente com as boas condições de permanência no país. Otto e a esposa, Edith, decidiram deixar a Alemanha e se mudar para a Holanda.

Em Amsterdam, Otto estabeleceu um novo negócio no ramo alimentício e a família se acomodou numa casa em Merwedeplein. Parecia que as coisas tinham se assentado, mas, dia 10 de maio de 1940, as tropas alemãs invadiram a Holanda. O pesadelo voltou. As restrições que havia contra os judeus na Alemanha começaram a ser impostas no país dominado pelos nazistas, afetando a vida e os negócios da comunidade judaica. Otto tentou emigrar com a família para os Estados Unidos, mas não conseguiu deixar o país – a tentativa de fugir para a Inglaterra também havia fracassado. Aflita, a família começou a preparar um esconderijo no prédio onde funcionava a empresa de Otto, localizado no canal Prinsengracht, número 263, em Amsterdam.

Em 5 de julho de 1942 a filha mais velha do casal, Margot, recebeu uma convocação do Centro de Emigração Judaica para se apresentar em um campo de trabalho forçado. Ficou claro que todos eles deveriam se esconder. Uma semana depois chegou o casal Van Pels, com seu filho. Em novembro, o dentista Fritz Pfeffer juntou-se ao grupo.

Naquele espaço limitado, os oito integrantes reaprenderam a conviver. Eram inevitáveis as divergências e os atritos, ainda mais levando-se em consideração o medo e a apreensão que todos carregavam. Separado do escritório da empresa por uma porta bloqueada por uma estante, o esconderijo provocava desconfianças. Durante a noite, eles não podiam acender luzes.

No período de cativeiro, o grupo foi ajudado por funcionários da empresa de Otto: Johannes Kleiman, Victor Kugler, Miep Gies e Bep Voskuijl, e também pelo marido de Miep, Jan Gies, e pelo gerente do armazém, Johannes Voskuijl, pai de Bep. Essas pessoas eram a única relação que eles tinham com o mundo exterior. Além de comida, roupas e livros, também traziam notícias e, às vezes, alguma esperança.

No seu aniversário, um mês antes de ir para o esconderijo, Anne ganhara de presente um diário, que logo se tornou a sua melhor companhia. Ela escrevia sobre os acontecimentos no “Anexo Secreto”, as dificuldades que todos enfrentavam, e também sobre si. Revelava o desejo de ser escritora e jornalista. Também escrevia contos.

Quando ouviu o ministro holandês exilado falando pelo rádio, Anne decidiu editar as suas anotações, compondo um romance que se chamaria O Anexo Secreto. Sonhando em publicar o livro assim que a guerra acabasse, no dia 20 de maio de 1944 ela começou a escrever em folhas soltas de papel, continuando o trabalho nas semanas seguintes até que, no dia 4 de agosto, o esconderijo foi descoberto e todos acabaram presos. Além deles, também foram detidos os funcionários Johannes Kleiman e Victor Kugler. Nunca se soube como as autoridades descobriram o local. Diversas investigações foram conduzidas com o propósito de apurar a fonte dessa informação, mas nenhuma delas foi conclusiva.

Casa de Anne Frank, Amsterdam, Holanda
Casa de Anne Frank, Amsterdam, Holanda

Após passar pelo campo de transição de Westerbork o grupo foi deportado para Auschwitz, onde Otto se viu separado da família. Anne e a irmã acabaram em Bergen-Belsen. Johannes Kleiman e Victor Kugler, considerados inimigos do regime nazista, foram para o campo de Amersfoort. Kleiman não ficou muito tempo detido, e logo foi libertado. Kugler, que não teve a mesma sorte, conseguiu escapar seis meses depois.

Sem perder tempo, Miep Gies e Bep Voskuijl trataram de guardar o diário de Anne e as folhas avulsas deixadas no esconderijo.

Com o fim da guerra na Europa, em maio de 1945, Otto foi libertado e voltou para a Holanda. Desolado, recebeu a notícia de que a esposa Edith havia morrido, mas ainda guardava esperança de encontrar as duas meninas. Em julho, ficou sabendo que ambas haviam morrido de fome e doença (provavelmente tifo) no campo de Bergen-Belsen. Miep Gies, então, entregou-lhe as anotações de Anne.

A leitura daquelas páginas manuscritas provocou mais emoções ao já sofrido Otto. Ele pôde reviver os dois anos que todos passaram juntos e, também, conhecer um lado diferente da filha.

Seguindo o conselho de amigos, resolveu publicar o diário. Lançada em 25 de junho de 1947, a obra rapidamente conquistou os leitores e foi traduzida para mais de 70 idiomas, originando uma peça de teatro e um filme.

Otto continuou a trabalhar com Miep e Jan Gies por mais sete anos após a sua libertação, mas logo começou a se envolver com campanhas pelos Direitos Humanos. Em 1960, a Casa de Anne Frank foi transformada em museu.

Em resumo, esta é a história dos personagens. Mas o que será decidido a respeito do livro?

Apesar de regulado por leis internas e tratados internacionais, o assunto não parece ter solução pacífica. No Brasil e em boa parte dos países signatários da Convenção de Berna, a proteção dos direitos autorais expira a partir do dia 1º de janeiro seguinte aos 70 anos da morte do autor. No caso de coautoria, do último autor. Assim, o procedimento seria verificar se realmente houve coautoria em O Diário de Anne Frank.

Para alguns especialistas que se debruçaram sobre o tema, como a pesquisadora holandesa Emilie Kannekens, por exemplo, não é possível falar em trabalho colaborativo. Conforme o entendimento da estudiosa, a cooperação somente ficaria caracterizada se a contribuição individual não pudesse ser separada do todo. Para Emilie, isso não acontece com o Diário, pois, em primeiro lugar, Anne Frank e o pai nunca trabalharam juntos na criação do livro, e, segundo, é possível identificar, na última versão, quais trechos foram alterados por Otto. Assim, fica difícil negar que as duas versões escritas por Anne Frank caíram em domínio público em 1º de janeiro deste ano.

A propósito, os originais da obra estão no Instituto Holandês para a Documentação de Guerra. Quem quiser, que os publique, mas saiba que nesse caso estará contrariando a vontade de Anne Frank. A jovem logo se apressou em produzir a segunda versão do livro, ou seja, não queria levar a primeira a público. E essa segunda versão, como mencionado, está incompleta.

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